Por bbc.com – 4 min – Exibir original
Nas últimas semanas, discussões sobre o laicismo francês invadiram jornais e debates televisivos na França e no exterior, um mês após a decapitação do professor Samuel Paty e cinco anos após o massacre no clube parisiense Bataclan e outros ataques islâmicos que marcaram a noite mais sangrenta no país europeu desde 2ª Guerra Mundial.
O laicismo é um princípio constitucional que implica a separação do Estado e das organizações religiosas e exige a igualdade de todos perante a lei, independentemente de suas crenças ou convicções.
O conceito defende a liberdade de acreditar ou não em uma religião, garantindo o livre exercício de todos os cultos, o que também implica que ninguém pode ser obrigado a respeitar dogmas ou normas religiosas.
“Embora tenhamos o hábito de relacioná-lo com a lei de 9 de dezembro de 1905 sobre a separação das igrejas e do Estado, na realidade, é antes de tudo um princípio político de organização do Estado e da República”, diz o historiador Guylain Chevrier, especialista em questões de integração e laicismo, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
“O artigo 1 da Constituição afirma que a França é uma república indivisível, laica, democrática e social: o laicismo é então um de seus quatro pilares”.
E o especialista afirma que é um princípio muito valorizado na ideologia republicana coletiva do país.
Isso porque a morte do professor Samuel Paty — decapitado após ter mostrado a seus alunos caricaturas do profeta Maomé — reacendeu as preocupações sobre o lugar da religião e da liberdade de expressão no país.
De acordo com uma pesquisa publicada logo após o ataque, elaborada pelo Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop), 87% dos franceses consideram que o secularismo está “em perigo” e 78% consideram “justificado” que professores mostrem caricaturas zombando da religião para ilustrar a liberdade de expressão do país.
Em parte devido ao temor de que um aspecto republicano muito valorizado se perca, analisam os especialistas, nos últimos anos cresceu uma tendência mais extrema na França: o laicismo radical.
“Na França, existem várias correntes (de secularismo radical). Por um lado, você tem uma que apóia a proibição total de qualquer manifestação e sinais de pertencimento (religioso)”, diz Chevrier.
“Mas, por outro lado, existe a vontade de criar uma espécie de ateísmo estatal. Nada disso corresponde à concepção inicial do conceito de secularismo: o Estado, separando-se das igrejas, não as exclui da sociedade”.
O ateísmo de Estado, ao contrário da laicidade ou secularismo, promove políticas anti-religiosas e ateístas. No passado, países como a França e a União Soviética implementaram essa corrente.
Para Sylvie Pierre, professora de informação e comunicação da Universidade de Lorraine e especialista em secularismo, a ascensão do radicalismo laico está ligada às atuais tensões entre alguns setores da sociedade francesa e o islamismo.
“É uma questão de retórica no contexto atual. Hoje falamos de radicalismo secular devido a problemas relacionados ao Islã e na França existem atualmente grupos que promovem discursos anti-islâmicos, apresentando-se como movimentos seculares”, explica ela à BBC News Mundo.
Criada em 2007 como um site que se identifica com princípios seculares e republicanos, e que reúne “patriotas de esquerda e de direita que não aceitam a islamização de seu país”, a Riposte laïque tem sido alvo de diversos processos criminais desde a sua fundação por incitação ao ódio.
‘Invadido pelo Islã e por imigrantes’
“A maioria deles são pessoas de extrema direita que buscam amedrontar a população e recorrer à dramatização, a teorias como a grande substituição e a ideologias racistas que clamam pela expulsão de certos povos”.
“A grande substituição” é uma teoria da conspiração frequentemente usada por círculos de extrema direita na França que assegura que a população “autóctone”, considerada branca, será eventualmente substituída por uma população imigrante.
Os especialistas concordam que o aumento do extremismo islâmico que a França experimentou nos últimos anos deu origem ao secularismo radical no país, embora o apoio a essa ideologia permaneça minoritário, assinala o historiador Guylain Chevrier.
“O surgimento de um Islã radical gerou tensões e fomentou outras correntes radicais: é uma espécie de efeito espelho. Em todas as sociedades ocorre esse tipo de efeito e não devemos esquecer que a França é um país em que cerca de 10% da população se considera muçulmana. “
Chevrier diz acreditar que o radicalismo secular “ajuda” o islamismo extremista ao se envolver em “comportamentos semelhantes” e se organizar “quase da mesma maneira”.
Embora os ataques do chamado jihadismo na França tenham sido muito mais frequentes e deixado mais vítimas, o radicalismo de extrema direita também tem sido uma fonte de violência no país.
Em outubro de 2019, Claude Sinké realizou um ataque à mesquita de Bayonne, no sul da França, atirando e ferindo dois homens de 74 e 78 anos.
E de acordo com o Observatório Nacional contra a Islamofobia (ONCI), órgão ligado ao Ministério do Interior francês, os ataques contra a população muçulmana no país totalizaram 154 em 2019, 54% a mais do que no ano anterior.
Sylvie Pierre argumenta que nem a islamofobia nem o secularismo radical são o caminho a percorrer se o objetivo é combater o radicalismo islâmico.
“Muitos homens e mulheres muçulmanos foram integrados por muito tempo em nossa sociedade, na vida diária, e o secularismo republicano precisamente nos permite viver juntos”, diz.
“O secularismo radical simplesmente destrói o princípio de tolerância e da liberdade de consciência”, conclui
0 comentários